Editorial
DOI:
https://doi.org/10.5281/sppa%20revista.v26i2.424Resumo
É com satisfação que introduzimos agora o número Verdade/Mentira II, dando continuidade ao estudo dessa temática tão importante, em especial na atualidade. Como sempre, contamos com autores de nosso meio bem como de outras nacionalidades, o que satisfaz o critério editorial da Revista no sentido de proporcionar uma leitura plural da psicanálise. Temos percebido, através das submissões de artigos, que tanto autores de nossa Sociedade quanto outros da Itália e da França vêm se mostrando especialmente receptivos ao nosso convite para a escrita dos temas de estudo propostos a cada ano. Assim, contamos, não por acaso, na seção temática deste número, com mais um artigo de colega da SPPA, bem como com dois artigos de psicanalistas italianos, dois franceses, um espanhol e um canadense.
Iniciamos com o artigo de Antonino Ferro e Giovanni G. Stella, Contribuição a uma teoria psicanalítica da mentira, através do qual os autores apresentam uma concepção da mentira enquanto não apenas um obstáculo ao tratamento, mas como um refúgio mental, uma função da mente com um gradiente e elemento de vitalidade psíquica.
Outro autor que postula a capacidade de mentir como uma aquisição positiva do desenvolvimento infantil, por refletir uma tomada de consciência da autonomia do pensamento, é Dominique Scarfone, em seu artigo Máquinas de escrever verdades e mentiras. Segundo o autor, o sintoma histérico – mentira que, ao mesmo tempo, diz a verdade do impacto do outro originário – insere-se nessa linha. Ele reflete que o sujeito psicótico não dispõe dessa possibilidade e passa procurando – sem sucesso – dizer a verdade de sua experiência de alteridade através dos próprios delírios. Como exemplo, utiliza a novela de Kafka, Na colônia penal, para demonstrar que o corpo não pode ser traduzido em linguagem sem deixar um resíduo, e que tentar inscrever a verdade no corpo não faz senão destruí-lo.
A seguir, nossa colega Anette Blaya Luz apresenta A mentira na Grade Negativa de W. Bion. Seu trabalho revisa conceitos desse autor sobre a grade negativa, as transformações e os vínculos L, H e K, buscando demonstrar como eles se entrelaçam. Utiliza, ainda, uma vinheta clínica para ilustrar suas ideias.
Em Originário e verdade, Beatrice Ithier busca explorar uma forma de verdade que considera estar ligada ao originário e que se dá como especularidade. No seu entendimento, a verdade e a mentira podem ser consideradas de acordo com um processo reversível do especular ao onírico e vice-versa, uma vez que o originário não desapareceria. Discute a ligação entre pictograma e quimera, utilizando também material clínico para esclarecer suas concepções.
Com Tudo bem, aliás, superbem: uma biografia em poucas palavras, Elena Molinari examina a distinção que Bion faz entre a mentira necessária para o conhecimento do real e a mentira enquanto defesa extrema contra a dor. A autora discorre também sobre a capacidade materna, referida por Bion, de auxiliar o bebê a conceber elementos alfa e pictogramas emocionais, precursores da capacidade de sonhar. Faz uso de uma metáfora matemática quando menciona que o conceito de elemento infinitesimal permite intuir a existência de elementos desse tipo na relação primária e na relação analítica.
O último artigo desta seção está sendo publicado graças à concessão do International Journal of Psychoanalysis para traduzirmos Indução ao conluio na relação perversa: enactments perversos e baluartes como disfarce para a ansiedade de morte, escrito pelo psicanalista espanhol Jaime Pablo Nos. Ele enfatiza que uma das formas perversas de transferência se caracteriza por um pacto perverso do paciente em induzir o analista a tornar-se inconscientemente seu cúmplice na desmentida de aspectos intoleráveis da realidade. Defende que a análise da patologia perversa não deveria se limitar à interpretação do funcionamento intrapsíquico do paciente, mas também atentar para os enactments que envolvem a dupla, bem como para a detecção dos baluartes que podem estar subjacentes. Apresenta o caso de um paciente com caráter perverso para demonstrar suas concepções teóricas.
Na seção Temas Diversos, selecionamos um artigo inédito em português de André Green, publicado pela Revista Francesa de Psicossomática em 2007, a qual gentilmente nos autorizou a disponibilizá-lo aqui em português para proveito de nossos leitores. Também compõem esta seção dois artigos que nos foram espontaneamente enviados, um deles de Meg Harris Williams e outro de um grupo de psicólogos mineiros.
O artigo de Green, Pulsões de destruição e doenças somáticas, examina o que ele considera como a ambiguidade dos conceitos de Pierre Marty sobre regressão e desorganização. Afirma a necessidade de revisão do conceito de pulsão para explicar as desorganizações da psicossomática, propondo a hipótese de uma dissociação precoce entre a pulsão e o objeto nessas estruturas. Exemplifica suas ideias a partir do exame das crises somáticas de Goya e de sua produção das pinturas negras, decorrentes desse período.
Dedicada ao estudo psicanalítico de mitos e obras clássicas da literatura, Meg Harris Williams tem nos brindado com o envio de alguns desses trabalhos, entre os quais publicamos agora A ferida edípica em duas narrativas de Kafka: A metamorfose e Um médico rural. Partindo das obras mencionadas, objetiva analisar a forma como Kafka utiliza o conflito edípico com seu pai ou com os valores recebidos pela Lei como maneira de compreender o tipo de ferida que resulta na escrita criativa. Segundo a autora, o processo de escrita e o valor de fé que Kafka demanda é uma metáfora subjacente de sua vida onírica. Com o intuito de aprofundar o tema, ela também traça paralelos com as ideias de Bion sobre sofrimento e alojamento da psique.
Por fim, examinando o conceito lacaniano de gozo, Flávia Parizi Pedroso Coelho, Cláudia Aparecida de Oliveira Leite, Pedro Sobrinho Laureano e Wilson Camilo Chaves apresentam seu trabalho As bases em Freud do conceito lacaniano de gozo. Através deste, propõem que a elaboração do conceito de gozo em Lacan remete necessariamente a noções e conceitos fundamentais de Freud sem os quais seria impossível conceber o conceito lacaniano.
Desejamos a todos uma ótima leitura.
Lúcia Thaler
Editora da Revista de Psicanálise da SPPA
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