Editorial
DOI:
https://doi.org/10.5281/sppa%20revista.v24i1.272Abstract
Não há dúvidas de que Freud e muitos de seus seguidores estiveram, desde sempre, cientes da impossibilidade de separarmos a psique do soma e de que fazemos esta separação apenas por necessidades didáticas.
Apesar de não ter falado em psicossomática, o criador da psicanálise esteve atento às relações entre corpo e psique e às patologias que poderiam advir daí. Demonstrou, desde os primórdios de seus estudos, que a conversão histérica correspondia à simbolização no corpo de conflitos não elaborados e reprimidos, bem como relacionou as neuroses atuais a um momento de desamparo, reatualizado mais tarde pelos sintomas.
No entanto, é inegável que a evolução dos estudos psicanalíticos, especialmente ao longo das últimas décadas, tem possibilitado aprofundar o entendimento e consequente atendimento a psicopatologias graves e que envolvem o corpo. Ampliou-se a compreensão que, se o indivíduo apresenta falhas na aquisição da capacidade simbólica e da representação psíquica de conflitos, o resultado pode culminar em somatizações. Sabemos, a partir de Bion, Winnicott e de autores contemporâneos, que emoções não digeridas, ou seja, sem representação psíquica, são evacuadas através do ato ou do corpo.
Mais recentemente, por meio da Escola Psicossomática de Paris, psicanalistas sob a liderança de Pierre Marty aprofundaram a abordagem das patologias corporais como possíveis consequências do sofrimento emocional. A descarga no corpo seria o recurso do aparelho psíquico para liberar-se de excitações que ultrapassam sua capacidade de elaboração. Seria uma forma fracassada de responder aos excessos.
A partir desses desenvolvimentos, o conhecimento sobre o corpo e a psique vem sendo paulatinamente alargado, possibilitando a aplicação da técnica psicanalítica para uma gama cada vez mais ampla de pacientes, bem como para a compreensão de que – quando falta representação psíquica – não basta nos valermos da técnica psicanalítica clássica. Nesses casos, necessitamos utilizar abordagens que possibilitem ligar o que é evacuado, ajudar a criar representações mentais.
Pretendendo contribuir para esse estudo, nós – os componentes do Conselho Editorial da Revista – escolhemos, ainda em 2014, Corpo como uma das temáticas a serem publicadas em um futuro próximo. Surpreendentemente, pouco depois no mesmo ano, constatamos que este havia sido justamente o tema escolhido para o Congresso da FEPAL de 2016. Pensamos que esta foi uma feliz coincidência, pois possibilitou contarmos com artigos cujos autores já estariam escrevendo com vistas à sua participação no referido Congresso. Por outro lado, confirmou-se o quanto é comum que algumas ideias se apresentem simultaneamente nos mais variados contextos, como se elas estivessem pairando no ar. Creio que este pode ter sido o caso desta coincidente escolha temática.
Assim, com o intuito de mergulharmos nesta instigante matéria, apresentamos o novo número de nossa Revista, confiando que, da mesma forma que o foi para nós, seja também enriquecedora para nossos leitores.
O primeiro artigo O corpo, de autoria de Rafael Cruz Roche, reflete sobre a evolução do pensamento de não dissociação corpo-psique, enfatizando a importância da obra de Freud e de filósofos do século XX neste desenvolvimento. Por outro lado, demonstra o quanto ainda esta dissociação se faz presente em certos modos de pensamento.
Em continuidade, Norberto Carlos Marucco, em Corpo, luto e representação no campo analítico: algumas reflexões sobre a psicossomática hoje, posicionase em defesa da expressão psicossomática como uma via de manifestação para inscrições ainda não representadas. Mostra que a evolução patológica de um processo de luto, estruturado pela desmentida e cisão do ego, pode produzir o que chama de melancolia corporal.
Um trabalho clínico a respeito de uma paciente com queixa de dor física e dificuldades para lidar com a dor psíquica é ilustrado através de vinhetas compreendidas pelo vértice psicanalítico em Caminhos da dor: do corpo à dor de existir pelas mãos de Norma Lottenberg Semer, Ariane Fadel Martinho e Roberta Katz Abela.
A anorexia e a bulimia: entre o corpo, o eu e o outro é o artigo seguinte de autoria de Maria Helena Fernandes. Traz para discussão algumas hipóteses metapsicológicas com o intuito de melhor compreender o processo de construção da imagem corporal. Estuda a clínica psicanalítica da anorexia e da bulimia, que nos colocam diante da especificidade dos processos da adolescência.
Tendo como objetivo levantar questões sobre o corpo da voz para compreensão de sua ação enquanto forma dentro da sessão analítica, Eliana Rache escreve Tem algo na voz que não se pode dizer: reflexões sobre o corpo da voz. Utiliza-se do referencial psicanalítico e de conhecimentos de estudiosos de outras áreas e termina fazendo um convite a empregarmos tais conhecimentos como uma útil ferramenta clínica.
Patrícia Porchat e Vinícius M. Godeguezi, em O corpo, o dildo, a carne e o fetiche: Preciado com Freud, contribuem com um artigo sobre sexualidade que busca aproximações entre a teoria queer e a psicanálise. Procuram estabelecer um diálogo possível entre as ideias de autoria de Preciado, constantes em seu Manifesto contrassexual, com as posições assumidas por Freud, especialmente as que se referem à disposição perversa polimorfa e ao fetichismo.
Discutindo as possíveis interpretações da tatuagem enquanto fenômeno cultural, bem como fazendo uma aproximação entre corpo e obra de arte, João A. Frayze-Pereira apresenta o artigo Tatuagem e simbolização: corpo reflexivo. Segundo ele, o conceito de corpo reflexivo permite ver relações entre tatuagem e simbolização, entre a experiência psicanalítica e a estética.
Finalizamos a temática deste número com Hans Bellmer e a invenção da boneca: o empuxo-à-mulher e a construção de um corpo fora de Renata Damiano Riguini e Cristina Moreira Marcos. As autoras trabalham a definição lacaniana de empuxo-à-mulher na psicose e sua relação com o corpo e com o gozo. Partem da invenção A boneca, do artista Hans Bellmer, que, segundo sua hipótese, pôde sanar a dissolução imaginária do corpo e a vivência de um gozo deslocalizado.
A entrevista com Howard B. Levine – sessão que encerra este número – constitui a transcrição de um estimulante diálogo que o Conselho Editorial da Revista realizou com o Dr. Levine por ocasião de sua recente visita à nossa Sociedade em novembro de 2016. Esta conversa oportunizou conhecermos mais de perto nosso convidado, bem como algumas de suas contribuições originais à nossa disciplina.
Desejamos a todos uma ótima leitura.
Lúcia Thaler
Editora da Revista de Psicanálise da SPPA
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