Editorial

Autores

  • Lúcia Thaler Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre / International Psychoanalytical Association

DOI:

https://doi.org/10.5281/sppa%20revista.v24i3.325

Resumo

Em 1932 Albert Einstein – que era um humanista – perguntava a um Freud já idoso e renomado o porquê das guerras, em uma correspondência que se tornou mundialmente muito conhecida desde então. Ambos os pensadores estavam preocupados com a agudização da crise econômica na Europa e com a ascensão do nazismo, fatos que viriam realmente a culminar na II Guerra Mundial poucos anos depois.

A estas alturas, Freud já havia formulado suas principais teorizações, entre as quais não era mais novidade aquela que abordava a oposição entre as pulsões de vida e de morte. Freud falara da importância de o ser humano realizar um complexo processo de intricação das pulsões, salientando a necessidade do recalque de certas satisfações para a preservação da vida e da saúde.

Ele nos ensinou que o homem também precisou desenvolver a capacidade de recalcamento de tendências pulsionais inatas para construir a civilização. Quando este mecanismo falha, quando a ligação entre as pulsões se desfaz, surgem sintomas patológicos no indivíduo ou nas coletividades, entre os quais o sadismo e as mais diversas manifestações destrutivas. Independente de concordarmos ou não com a existência da pulsão de morte tal qual ela foi concebida em 1920 por Freud, como uma pulsão que tende ao nível zero de tensão, ou seja, à volta ao estado inanimado, muitos de nós acreditamos que o homem nasce com uma tendência tanto à vida quanto à destrutividade. E a forma como essas tendências inatas se combinam determina o grau de saúde e a capacidade de conter as pulsões contraditórias dentro de si. Portanto, é indispensável que o ódio – que é uma das manifestações resultantes dessa intricação das pulsões – seja integrado à personalidade e tolerado internamente. Precisamos do ódio para a autoconservação, bem como para o estabelecimento de relações maduras, não maniqueístas, que suportem as contradições internas, as diferenças entre os indivíduos.

L. Stitzman, utilizando-se de um referencial bioniano – no artigo com que contribui para este número – afirma que o ódio faz parte de uma mente emocionalmente sã e que, sem ele, não há amor nem conhecimento em transformação criativa. Diz ele que um amor sem ódio deslizaria necessariamente para a idealização, que, levada ainda a maiores extremos, poderia culminar em adoração (vide os fanatismos de todos os gêneros). Por outro lado, o ódio sem amor impede o conhecimento do outro, manifesta-se como desprezo e pode resultar, em casos radicais, na crueldade (que não por acaso vemos se manifestar nas ideologias fundamentalistas).

Como sabemos – e Freud o afirmou em seus escritos de cunho social – as guerras não deixam de ser uma mostra do quanto a não integração pulsional e um funcionamento dissociativo podem ser destrutivos para a humanidade. Apesar de não negar que as disputas entre as nações na era moderna tenham um forte componente mercantilista ligado a interesses armamentistas, ele salienta a que ponto o ódio está sempre propenso a uma eclosão sem limites, o que também se faz presente na origem das guerras e convulsões sociais.

Seria dispensável comentar que as disputas entre pessoas, grupos e facções existiram desde sempre, das mais diversas formas. Desde o surgimento de sua espécie, o homem entra em confrontos com seus semelhantes. Isto se deve não apenas à luta pela sobrevivência, mas à premente necessidade de externar e satisfazer as pulsões destrutivas, voltando-as para fora. No entanto, há períodos da história em que parece haver uma exacerbação das manifestações de ódio. Pensamos que este acirramento está acontecendo na atualidade, em variados âmbitos e das mais diversas maneiras.

O advento da globalização, com a possibilidade de estarmos cada vez mais informados, permanentemente online, acerca das mais terríveis formas de externalização da maldade humana, nos mais distantes pontos do planeta, exerce um efeito de saturação e de pasmo. Uma espécie de fascismo parece estar acometendo a humanidade, agora sob novas roupagens.

A todo momento vemos pipocarem notícias sobre assassinatos, perseguições raciais, guerras locais, intolerâncias raciais e religiosas, individualismo, falta de empatia, etc. Isto produz uma sensação de insegurança, pois tal desequilíbrio parece poder romper de súbito as aparentemente frágeis bases civilizatórias.

Recentemente, temos vivido, aqui mesmo em nosso país, uma guerra surda nas redes sociais em que a cada hora surgem contendas virtuais com uma virulência que surpreende e assusta. Isto sem mencionar as notícias ininterruptas e alarmantes sobre o aumento dos índices de criminalidade e de um completo esfacelamento da moral e da ética por parte de nossos governantes e representantes institucionais e políticos.

Para além das óbvias motivações sociais e econômicas dessas crises, seguimos nos questionando sobre as motivações psicológicas que levam o ser humano a, recorrentemente, se desestabilizar e a se ver envolvido em situações de desamparo e violência vivenciadas individual ou coletivamente.

Cristopher Bollas, psicanalista inglês que muito contribuiu com seus estudos para a compreensão da maldade, escreveu em 1989 um texto profundo e esclarecedor a respeito do que ele denomina de estado mental fascista, texto este que nos ajuda a compreender as raízes do fascismo enquanto uma defesa patológica do indivíduo e da cultura, que buscam se livrar dos aspectos intoleráveis de si mesmos via identificação projetiva. Ele denuncia como fascistas as mentes que não querem ser contaminadas pelas demais e que buscam as teorias puras, as raças puras. Conhecemos muito bem a que resultados esta busca pela pureza pode levar os indivíduos e a humanidade...

Creio, portanto, que foi o conjunto do que se tem denominado mal-estar na contemporaneidade, aliado ao desejo de contribuir para a compreensão e aprimoramento de nosso papel diante dos conflitos internos e externos de nossos pacientes e comunidades, o que nos levou, enquanto Conselho Editorial, à escolha desses dois temas paradigmáticos: ódio e amor. O primeiro – Ódio – compondo o presente número e o segundo – Amor – a ser publicado em nossa próxima edição em abril de 2018. São matérias que ocupam os psicanalistas desde sempre e que vêm sendo aprofundadas ao longo desses mais de cem anos de desenvolvimento de nossa ciência. Mas que sempre inquietam e estimulam seu maior conhecimento.

Convidamos, como costumeiramente o fazemos, autores locais e internacionais para comporem este número temático. Acreditamos ter obtido um instigante conjunto de artigos, versando, alguns, sobre a metapsicologia do ódio com diferentes referenciais teóricos, outros estudando as manifestações do ódio em contextos sociais, culturais ou mesmo institucionais, tais como o fanatismo, a violência, o terrorismo; outro, ainda, desenvolve uma investigação empírica sobre a violência, o que nos recorda de nosso papel para o estímulo à pesquisa científica em psicanálise.

Entre os autores estrangeiros, encontramos artigos inéditos de René Roussillon e Jean Claude Rolland (França), Leandro Stitzman e David Maldavsky (Argentina), Ana Belchior Melícias (Portugal), bem como um artigo de André Green publicado originalmente na Revue Française de Psychosomatique em 2007 e que ora publicamos em português em primeira mão. A prata da casa são os artigos elaborados por nossos colegas da SPPA: Carlos Augusto Ferrari Filho, Luciane Falcão, Luisa Rizzo e Vivian Peres Day. O número finaliza com a entrevista que o Conselho realizou com Jean Claude Rolland quando visitou nossa Sociedade em agosto passado. Nesta, ele apresenta algumas de suas ideias originais a respeito da teoria e da técnica psicanalíticas, entre as quais o fato de não se utilizar do conceito de pulsão de morte. Esperamos que o conjunto desses artigos seja enriquecedor para nossos leitores e contribua para o entendimento dessa importante moção da natureza humana – o ódio.

Lúcia Thaler
Editora da Revista de Psicanálise da SPPA

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Publicado

14-12-2017

Como Citar

Thaler, L. (2017). Editorial. Revista De Psicanálise Da SPPA, 24(3), 411. https://doi.org/10.5281/sppa revista.v24i3.325

Edição

Seção

Editorial